[2] Ora os crimes são de três espécies…
2.º fragmento – Tipologia do crime e psicologia do criminoso
Ora os crimes são de três espécies — crimes de temperamento, crimes de impulso e crimes de ocasião. São crimes de temperamento aqueles que não são suscitados por uma circunstância externa que os justifique — não direi moralmente, pois nada justifica o crime moralmente — mas intelectualmente; os crimes, quero dizer, que têm uma razão de ser em nada proporcional com eles. O homem que mata outro por motivo trivial, o homem que rouba sem necessidade flagrante de dinheiro ou podendo com um pouco mais de trabalho obter dinheiro por processos honestos — estes homens cometem crimes de temperamento.
São crimes de impulso os que são suscitados por circunstâncias externas que, na ordem intelectual, os justificam. O homem que mata a mulher que o trai, o homem que rouba para arranjar um dinheiro que de modo algum poderia arranjar legitimamente, ou legitimamente com a urgência que um pagamento exige — estes homens cometem crimes de impulso.
São crimes de ocasião aqueles em que o motivo não chega para justificar intelectualmente o crime, mas em que se dá uma circunstância externa que exerce sobre o indivíduo uma tal tentação, que ele lhe não pode resistir.
Temos aqui, evidentemente, três graus de criminalidade latente. Sim, porque, até no criminoso de impulso tem de haver criminalidade latente. Entre os homens a quem as mulheres traem, poucos são, afinal, os que as matam; entre os homens a quem surge uma necessidade urgente de dinheiro, poucos são, afinal, os que o roubam. Há que haver, pois, no criminoso de impulso qualquer esboço do criminoso de temperamento. A diferença está em que a excitação externa tem que ser absolutamente forte — ou, em outras palavras, um motivo absolutamente compelente — para que o crime se realize. No criminoso de ocasião, já a predisposição tem de ser maior, pois, por definição, a excitação, ou circunstância externa, não tem força suficiente para suscitar, por assim dizer, normalmente ao crime. Temos que admitir, portanto, que o criminoso de ocasião é um criminoso de temperamento em que existe normalmente uma inibição da propensão criminosa, inibição esta que uma circunstância externa subitamente dissolve. Em outras palavras, o criminoso de ocasião é um criminoso de temperamento temperamentalmente inibido. Comecemos por investigar o que seja um criminoso de temperamento. Um criminoso é, em primeiro lugar, um anormal; o que é um anormal? um anormal é um ser que não procede habitualmente como os outros seres da sua espécie, e isto quer dizer que não é um ser como os outros da sua espécie, pois o procedimento habitual nasce daquilo que esse ser é. As funções da mente — ou as qualidades da alma, se assim se preferir dizer — são classificadas em três categorias distintas: o intelecto, a emoção e a vontade. Um anormal será, portanto, um indivíduo que, ou não pensa como os outros, ou não sente como os outros, ou não quer como os outros, quando não acumule mais que uma destas disparidades da norma.
Ora a vida é essencialmente acção, e a acção procede da vontade. A vontade, por sua vez, é suscitada por uma emoção, pois a simples ideia, ou representação não produz vontade, senão através da emoção, que é a razão de ser da acção.
Ora essas três funções da mente relacionam-se entre si da seguinte maneira: surge uma representação da ideia (intelecto); essa ideia produz uma emoção qualquer, essa emoção produz um acto, isto é, suscita um impulso da vontade, e o acto é simples ou completo, fraco ou forte, orientado neste ou naquele sentido, conforme a emoção que a representação suscitou. Isto, porém, desde que o intelecto, emoção e vontade funcionem normalmente. Como a vida é essencialmente acção, é pela vontade que pertencemos à vida, isto é, é pela vontade que estamos ligados aos outros — quase se poderia dizer, usando de uma frase paradoxal, que é pela vontade que somos outros. Pelo intelecto, que está no outro extremo, estamos o menos ligados aos outros; é nas nossas representações que somos mais nós, por isso mesmo que somos intransmissivelmente... A emoção está a meio caminho.
Temos, assim, que o criminoso é essencialmente um débil da vontade, não da vontade funcional, como nela seria débil um neurasténico, mas da vontade essencial. Não é a força de vontade que está doente no criminoso, como está no neurasténico, é a própria estrutura da vontade que está afectada.
Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986
- 134.«O Caso Vargas». 1ª publ. in A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa . Fernando Luso Soares. Lisboa: Diabril, 1976