I. - Li, sem entusiasmo e sem pasmo, o relato das tristes palavras...
Carta a um herói estúpido
I.
Li, sem entusiasmo e sem pasmo, o relato das tristes palavras que Vossa Heroicidade pronunciou no Funchal.
É tarde, bem sei, para comentar as suas afirmações. Num país onde os fundadores das instituições são desterrados por aqueles que se apossaram da mangedoura.
Nestas circunstâncias de entusiasmo exterior fez Vossa Heroicidade a sua entrada triunfal em Lisboa. Sabe o que vem encontrar? Sim, sabe entre que gente se encontra?
Eu começo por protestar contra o que há de anti-patriótico e de racialmente amnésico nos epítetos jogados entusiasticamente à sua heróica cabeça. Trataram-no com tais requintes de epitetação que dir-se-ia ser o Sr. um homem da estatura de Albuquerque ou de D. João de Castro.
Perdemos a noção das proporções. Ainda há pouco profanavam o nome de Nun'Alvares na pessoa aliás simpática, de Paiva Couceiro. Antes disso uns meliantes quaisquer pintaram o nome de Pombal nas democráticas costas de Costa.
E esse tacanho sub-Clémenceau impou da glória da alcunha.
As bestas que nos governam e as hipo-bestas que escrevem naqueles erros de (...) chamados os nossos jornais não têm uma obscura intuição da diferença entre um criador de civilizações e um mero soldado valente. Quando muito, o sr. pertence ao nível dum soldado que combateu nas primeiras conquistas, ainda que lhe falte a unidade psíquica que lhes vinha da fé e a (...)
Os nossos políticos não são gente. Nenhum deles mostra ter tido na sua vida uma daquelas crises espirituais donde se emerge talvez ferido para sempre, mas psiquicamente homem, personalidade espiritual.
São ateus pela mesma razão que o é um burro ou uma árvore. São portugueses porque, por desgraça nossa, nasceram adentro da nossa fronteira, oriundos de gente que secularmente assim tinha feito. Nenhum detalhe psíquico os mostra portugueses. Nenhuma centelha [?] lhes acende um momento o olhar. São vazios e estúpidos. Só sabem comer e manobrar para comer. A ignóbil figura de D. Carlos I, que o Diabo guarde, é ainda o símbolo de Portugal:
O facto fundamental disto tudo é que a Monarquia ainda existe. Vivemos ainda na Monarquia.
A subserviência, a indisciplina, a desorganização dos homens; a desonestidade, a corrupção, a opressão dos quadros governativos; a incúria com que fazem a educação como o fomento, o exército e a marinha como o comércio e a indústria em que mudaram estas coisas, se não em refinarem, se não porque tudo piorou, pelo menos porque tudo progrediu, e onde o facto é a crise, progredir é piorar.
A admiração das pobres criaturas talassas pela figura nula e indigesta de P. Manuel, em que se sente inferior ao entusiasmo e ao êxtase que assinalaram nas ondas portuguesas a passagem de Costa?
Cada vez mais corruptos, cada vez mais indisciplinados, cada vez mais à mercê do estrangeiro; vendidos ao perigo espanhol por Costa, (...)
O facto de esse homem, que em nenhuma outra parte mandaria fora da regedoria ou junta de paróquia que condiz com a sua mentalidade rudimentar, teria a posse dum partido, e através dele duma pátria. Nada há mais ignóbil que este facto que hoje é o primeiro nas consciências portuguesas — que, na real realidade, as nossas vidas e liberdades, o nosso e a nossa (...) estão à mercê desta Ordem de Cacilhas.
Como é natural, a revolta atingiu o máximo nos adversários. Esta opressão, que todos nós sentimos, esta vergonha de estarmos sendo governados por bacalhoeiros da política, que roubam no peso da própria retórica, (...)
«Carta a um herói estúpido». Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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