Querido Mestre:
Querido Mestre:
Quando decidimos conjugar os nossos esforços para iniciar uma renascença neoclássica na Europa, mal sabíamos que a vontade de Júpiter de nascença nos havia fadado para assim nos conjugarmos. Para produzir esse movimento mister era não só que houvesse uma reconstituição da alma antiga, mas, mais, porque se não podia simplesmente transplantar para hoje o sentimento pagão, dar a essa renascença uma base metafísica. Uma renascença clássica queria dizer, para nós, uma continuação da tradição grega. E uma continuação da trad[ição] grega queria dizer um alargamento e renovação da própria tradição grega, feitos dentro dos princípios eternos do espírito que preside ao helenismo.
Para o papel aparentemente principal de recondutor da alma pagã, sabeis bem que o Fado me fizera nascer. Excuso de vos falar de como eu sou de meu espontâneo ser, um crente verdadeiro e profundo na existência dos deuses imortais. Sabeis bem como, para mim, Júpiter, Vénus, Apolo e as mais presenças imorredouras que presidem à nossa vida transitória, são realidades e existências concretas. Agradeço-vos ainda o não vos ter custado a acreditar que [sou] verdadeiramente um crente verdadeiro nos deuses. Seria natural que julgásseis isto uma atitude poética. Estranho parece a um homem de hoje, - crente que seja no deus chamado Jesus, - que alguém com ele coexista que realmente sinta a existência de Júpiter, de Apolo, das amazonas [?], das nereidas, dos faunos e dos silenos.
Separou-nos, no espaço e na duração da vida, aquele que é superior aos próprios deuses, o Fado mas a vontade sincrética dos deuses segue o seu caminho dentro de nós. Aproximou-nos mais o nosso destino sinérgico. E ao passo que se aperfeiçoava em vós a nossa lúcida e nova visão do universo, completava-se em mim a posse inteira e desterrada dos deuses cuja ideia foi a aspiração da minha infância e a estalagem - da minha idade viril.
Trazíeis vós ao turbulento movimento literário português todo o Universo que estava dentro de nós. Mais humilde, eu trazia, Mestre, a re-visão lúcida dos deuses, a renascida crença antiga, que o turbilhão de falsos deuses cristãos, santos de seu nome, havia sepulto.
Do nosso unido esforço nascerá decerto o primeiro impulso da Nova Renascença. Nunca tivemos a ilusão da humildade, nem julgámos a nossa arte com um olhar menos nobre e altivo que o que Milton deve ter tido para as primeiras páginas do seu Paraíso Perdido, para a clássica escultura do seu Sansão Agonistes. Nunca nos enganaram, a mim, os Corneilles e os Racines do classicismo dos inferiores; a vós os materialistas estéreis e secos da nossa (...) civilização.
Sabíamos de sobra o quanto houve de estéril em querer erguer uma arte clássica sem primeiro varrer de cima dos nossos sentimentos todo o lixo com que o cristianismo os cobriu. Os Corneilles e os Racines nunca nos enganaram. Não confundimos nunca a secura da alma com a calma posse de nós-próprios, nem a incapacidade de sentir com a disciplina poderosa e espontânea dos próprios sentimentos. Por instinto vós, e eu pela minha educação, sobreposta a esse instinto também, fizemos esse erro de acreditarmos que haveria clássicos e gregos aqui da Grécia ou talvez de Roma.
Nesta suja e estéril república longínqua tudo é de jeito a cada vez mais, por uma reacção, me dar paganismo. Os meus pensamentos vão todos para essa paisagem lúcida e calma de Portugal, tão naturalmente predestinada a produzir os homens que tomarão das mãos longínquas dos gregos o facho do sentimento pagão (Naturalista).
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 361.Carta a Caeiro