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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

A Renascença, com cujo advento a nossa civilização começou,

Sens. or Book of War (introd.)

A Renascença, com cujo advento a nossa civilização começou, teve origem em três elementos, de diversa parte contribuídos para a sua formação. O primeiro, no tempo, foi o elemento individualista, cuja primeira forma (produzida pela vida independente das primeiras cidades que se destacaram da amorfa internacionalidade medieval), foi a revolta contra a autoridade da Igreja. Este elemento individualista teve uma tripla origem. No que individualismo político, e, daí, nacionalismo (por ser o espírito nacional o prolongamento colectivo do instinto individualista) (...), ele foi produto da vida independente que pouco a pouco foi caracterizando as cidades que se destacaram da amorfa internacionalidade medieval. No que individualismo puro e simples, isto é, individualismo consciente e directamente tendente a ser individualismo, nasceu ele no influxo da cultura greco-romana, e mais grega que romana, em que consiste, tipicamente, aquilo a que se chama a Renascença . Esta intromissão, na Europa medieva, dos elementos culturais, e, portanto, um pouco das condições culturais, da Antiguidade trouxe resultados que se podem cindir em três partes. A consciência da civilização pregressa (?), da avita (?) beleza pagã, aquela antiqua pulchritudo de que falava Agostinho, lentamente deslocou os valores recebidos pela acção da religião católica. Começando nos eruditos, descendo aos poetas e aos artistas (outros), esse conceito fundamentalmente inimigo das regras de vida, pessoal como social, da Igreja, foi-se infiltrando na vida das nações, aluindo, a pouco e pouco, a moral cristã, a política cristã, a soma sintética de atitudes contidas na psique do cristianismo. O gosto apurou-se primeiro porque espontaneamente se apurava no contacto com as obras presentes dos antigos; segundo, porque da comparação do latim medievo com as puras fontes da latinidade clássica o desdém nascia por essa reles forma da língua que ficara deslustrando a sua própria origem; terceiro, porque (...)

Por outro lado, o ideal do herói antigo ia ganhando as imaginações, e os princípios que haviam alentado a fúria e a gala do cavaleiro andante e do cruzado sumiam-se na admiração que vaporavam as páginas de Plutarco, e a contemplação, nas páginas de um Heródoto, de um Tucídides ou de um Tito Lívio, da outra forma de herói que caracterizara a Antiguidade.

Outra ainda foi a influência individualista da cultura antiga. E foi esta a mais directa. Em contacto com ideais que se antolhavam a todos mais belos, mais perfeitos, e de maior nobreza que os presentes as mentes dos homens da Renascença espontaneamente se tornavam inimigas ou de todo, ou de parte, do sistema que os rodeava e mergia, e em que haviam sido nados e nutridos.

Paralelamente — e é este o terceiro elemento tendente ao individualismo — a revolta contra a autoridade religiosa da Igreja e, implicitamente, contra toda a autoridade política dela emanada, recebia um estímulo constante e directo na existência temporal e política da Sé Romana. O Papa era um príncipe da terra, com sua política e com a sua diplomacia, e estas, como todas as políticas e as diplomacias todas, mormente num tempo onde a guerra não havia ainda deixado de ser uma realidade, se não quotidiana deveras, pelo menos quotidiana como conceito, abriam constantes conflitos com outros estados, com outros potentados, com outras cidades independentes. Pouco pesava essa dissidência constante quando sobre a Europa pairava ainda inabalada a crença católica pura. Mas quando outros elementos vieram, nem diremos aluí-la, mas basta que poder criticá-la, outro resultado fatalmente promanaria da constante fricção entre o estado papal e outros estados. Quando se repara que, nesta época, se dava já o acréscimo da consciência política adentro das cidades da Itália, e que as facções traziam constantes as suas lutas intestinas (?), breve se vê como, pouco a pouco, cisão após cisão se abriria com a predominância primeiro política, depois mesmo religiosa, da Sé Católica.

Além do estabelecimento, que então se fez, do Individualismo como uma das colunas em que assentasse (assentaria) a nossa civilização moderna, dois outros elementos, como disse, apareceram, e são esses os outros dois em que assenta, também, tal civilização.

O segundo — dando o Individualismo como primeiro — é o espírito científico.

Nada espanta tanto o investigador superficial que não seja tão superficial que se não lembre disso, como a incompetência, a incapacidade científica dos Romanos. Espanta, deveras, quando se repara na sua essencial apetência prática, na sua habilidade, sobretudo, para as artes materiais da vida, políticas como não políticas. Nas artes que tendem para o conforto, para a facilitação e para a segurança da vida foram mestres os Romanos. Nas que, embora venham a ter essa aplicação (nem se concebe que a não tragam implícita), representam primariamente, ou um trabalho da observação e da inteligência, como as descobertas, ou daquela e da imaginação, como as invenções, não deixaram os Romanos rastro; grega foi a invenção, e, árabe depois, para finalmente ser moderna. Passou inusada por Roma.

Da Idade Média, e pela Renascença, foram surgindo pouco a pouco as ciências, próprias como aplicadas. A invenção da imprensa, a descoberta da pólvora, a dos instrumentos náuticos, a (...) com uma fiada de tais descobertas e invenções se foi construindo o muro do templo da nossa era. As nossas descobertas marítimas, no que obra científica, entram, pelos seus efeitos nesta categoria.

O terceiro elemento foi o internacionalismo.Este é porventura o mais importante de todos, quando consideramos a importância pelo quanto o elemento é típico da civilização que designa. Individualismo e espírito científico teve a Grécia Antiga (a Hélade), e tais são — acrescido outro elemento, que para o caso não vem — as bases da sua existência civilizacional. Mas todas as civilizações que precederam a nossa foram, rigorosamente (se bem analisarmos), apenas monopolíticas, entendendo por tal termo que nelas, quando não estava o foco da civilização num só estado, a língua civilizacional era, em todo o caso, só uma. A coexistência do grego e do latim na era, já, da força romana, não tem sentido contrário, porquanto não se trata — como no caso das nações modernas — de duas nações em grau aproximado de força e vida, mas de duas nações que nitidamente se sucedem, velha uma e outra nova, no uso da civilização. (posse da civ.)

O internacionalismo começou por três causas. A primeira foi a série de contactos,

ainda no período medieval, entre a civilização cristã e outras, como a sarracena; prosseguiu depois pelo aumento dos contactos comerciais com o Oriente. O acréscimo da vida comercial das cidades, primordialmente as da Itália, levou a um grau importante estes contactos, e assim começou a aparecer o espírito internacionalista da civilização moderna.

Anterior a ele, outro elemento — e esse fundamental — existira. É o de o império romano ter abrangido gentes falando línguas diversas. A dissolução do império foi criando nações, ou esboçando-as, e as cidades depois as radicaram, mas o facto de ter havido o império deixou sempre uma tendência aglutinante (?), de modo que, separadas estas nações, nelas permaneceu a comum tradição romana, nelas perdurou a memória de terem formado parte de um conjunto. Assim, separadas, não se separaram; individualizando-se, não se dissociaram de todo umas das outras.

Vieram, finalmente, as nossas descobertas marítimas, que criaram o elemento colonialista da civilização moderna. E a nossa glória imarcescível que a civilização europeia é numa das suas partes importantes criação nossa. Por nós existe hoje uma civilização americana. Por nós há cidades e civilizações na África, na Austrália, na Índia na Ásia longínqua. Tudo quanto, longe da Europa, é europeu, a nós o deve. De nós descende a grandeza presente do Japão, como a existência colonial da Inglaterra. Que, se nós o não houvéssemos feito, outros o fariam, não é argumento que se empregue. Porque não é precisa a hipótese, onde há o facto. E o facto é que fomos nós que o fizemos.

Não se nos fale em Colombo ou em Cabot. Colombo, supondo mesmo que fosse italiano — como hoje se desprovou, mostrando-o galego — é sociologicamente português porque portuguesa é a iniciativa das descobertas, a ideação científica delas, a construção do conjunto das descobertas como obra civilizacional, e todos, portanto, quantos colaboraram em descobrir naturalizaram-se portugueses com o fazê-lo. E, se se replicar que não era essa a ideia nítida e certa do Infante nem da Escola de Sagres, replique-se que nunca ideia de nenhum actor importante da história é produzir exactamente o que produz, é representar exactamente o papel que o Destino lhe manda que represente.

Alonguei-me, assim, digressando um pouco, porque estou farto e doido da longa injustiça que a nosso respeito são todas as histórias da Europa. O que vale é que elas são bem justas a propósito dos seus autores universalmente e sem excepção (tão baixa jaz ainda a intuição das causas históricas!) incompetentes para formar uma apreciação sociológica dos eventos sociais.

Estas várias causas que colaboraram em produzir, tanto a Renascença, como, por isso os fenómenos básicos da nossa civilização, não estão separadas na realidade, senão na análise que fizemos. Elas são intricadas e interimplexas, e isto tanto na sua acção como na sua origem Tudo é uno, e uma civilização, porque é uma vida, um organismo psíquico vastíssimo e muito complexo, é una, organicamente indivisa, inséctil, (...)

s.d.

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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