[Cartas a João Gaspar Simões - 11 Abr. 1933]
Apartado 147.
Lisboa, 11 de Abril de 1933.
Meu querido Gaspar Simões:
Muito obrigado pelas suas duas cartas – uma que se cruzou com a minha, a outra chegada agora mesmo.
Acabei ontem de passar a limpo os Indícios de Ouro. Vou ainda rever a minha transcrição, para eliminar desde já quaisquer erros que haja; de sorte que só amanhã lhe mandarei essa parte final do livro.
O caso de o livro incluir ou não os últimos poemas resolveu-se-me automaticamente à medida que eu o ia passando a limpo. Os Indícios de Ouro, apesar de constituídos por poemas vários, e escritos sem intenção de formar um livro com esta ou aquela unidade, têm contudo uma nítida congruência íntima; representam, através dos vários poemas, uma fase absolutamente clara da vida mental do autor. A Caranguejola – que v. conhece da Athena, e que é o penúltimo poema do livro propriamente dito – destoa nitidamente do conjunto, e do mesmo modo destoam os tais últimos poemas. Visto isto, omiti do livro a Caranguejola, passando-o a limpo até fechar com Último Soneto.
O Sá-Carneiro várias vezes – e baseando-se sempre no instinto de uma morte prematura, naturalmente porque sentia que a daria a si mesmo – me falou da publicação, depois da morte dele, de qualquer livro que deixasse, dizendo-me que fizesse do livro o que quisesse e como quisesse. Esta autorização tem, evidentemente, limites – limites que qualquer pessoa, recebedora de tal encargo, a si mesma impõe. Creio, porém, que não excedo esses limites, antes me conformo absolutamente com o encargo, fazendo o livro consistir no que vai trasladado, e deixando os outros poemas para formar uma parte final e suplementar do volume que, nas Obras Completas, contenha os poemas. Refiro-me, não só aos últimos poemas que tenho, mas ainda aos tais outros possíveis que porventura venham a aparecer entre as cartas de Sá‑Carneiro. (Isto responde implicitamente à sua pergunta, se os últimos poemas por si podem dar um livro; está claro que não, pois, ainda com o que venha a aparecer, não passarão de uns dez ou doze, sendo por enquanto, com a Caranguejola , seis. Mas, como vê, o meu critério é outro).
No decurso desta semana farei a nota preliminar para os Indícios de Ouro; devo enviar-lha, o mais tardar, na segunda-feira próxima. Por essa altura deve v. também já ter aí completo O Guardador de Rebanhos. Esse também tem um breve prefácio, que seguirá mais tarde ; mas, enfim, o que v. quer é ter os originais.
Nisto, aliás, não tenha receio. A demora tem sido devida a uma falta absoluta de tempo, como lhe disse.
Dada a constituição do livro do Sá-Carneiro da maneira que acima indiquei, acho que está certíssimo que se publique na Presença o único poema dos Últimos que está inédito. Ela aí vai. Compreenderá logo por que razão não veio na Athena: a magnifica (e dolorosa) brutalidade de expressão na quadra «seguir pequenas» era estranha à índole daquela revista, ao passo que o não é à da Presença, como o não seria à do Orpheu.
Quanto à minha colaboração, seguirá amanhã, com o resto dos Indícios de Ouro.
Parece-me que isto abrange quanto lhe queria dizer hoje. Qualquer coisa, que me haja esquecido, direi amanhã.
Um abraço do seu muito amigo e admirador,
Fernando Pessoa.
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Europa-América, 1957 (2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982).
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