As qualidades mentais e morais necessárias para a conquista do poder político,
As qualidades mentais e morais necessárias para a conquista do poder político, ou tendentes a essa conquista, são inteiramente diferentes daquelas necessárias para governar o Estado. Pode dizer-se, até, que mais se podem ter por opostas que por sequer análogas. Pode haver, é certo, um ou outro homem que ambas reúna, como pode haver quem seja, ao mesmo tempo, filósofo e atleta; mas em ambos os casos se trata de uma excepção, e os dois tipos ou grupos de qualidades permanecem diferentes e até opostos.
São três as maneiras de conquistar o poder: a astúcia e a intriga, nos regimes autoritários, como a monarquia absoluta; a eloquência e a capacidade de persuasão, com a concomitante capacidade de mentir, até a si mesmo, para melhor mentir aos outros, como nos sistemas democráticos; e a violência, nos regimes impostos revolucionariamente, sejam eles de que tipo forem.
Destes três tipos de qualidades, a astúcia e a intriga, ou antes, a habilidade de empregá-las, são qualidades em certo modo úteis no governo do Estado, sobretudo nas relações externas e naquelas internas que com essas se assemelham (como as relações com os diferentes sectores de Opinião e seus chefes). A capacidade de comandar revolucionariamente pode implicar ou não uma vantagem no governo; depende do género de revolução que se comandou. Se a revolução foi espontânea, profunda, realmente popular — um motim em ponto enorme —, como a Revolução Francesa, então o seu dirigente ou dirigentes, não tendo sido mais que dirigentes ocasionais, nenhuma qualidade têm, como tais, que sirva em qualquer modo para o governo dos Estados. Se a revolução é só da superfície, feita por uma minoria organizada num país desorganizado, e, por desorganizado, apático e servil, então os organizadores da revolução algumas qualidades têm que há que ter o homem de governo: são, pelo menos, chefes e organizadores. Tal foi, em ponto pequeno, a nossa Revolução de 5 de Outubro; tal foi, em ponto grande, a Revolução Bolchevista. Em ambos os casos, a maioria do país era monárquica, sendo apenas. republicana num caso, comunista no outro, a minoria mais bem organizada; tendo a primeira como espinha dorsal a Ordem Maçónica, a segunda por principal esteio as organizações secretas judaicas. Não quer isto dizer que não fossem inevitáveis ambas revoluções; quer simplesmente dizer que não partiram do âmago da nação, mas propriamente do estado ou condição da nação.
O certo, porém, é que os homens saídos, para governar, desses dois movimentos, realmente governaram com certas qualidades. No caso da Rússia, povo passivo e com hábitos de escravo, o caso correu com mais perfeição, dada a unidade ou quasi-unidade de chefia, e a concordância quase total, e praticamente total, entre os chefes. Em Portugal, país a que noventa anos de liberalismo haviam dado já outra mentalidade, o caso nem se passou, nem se poderia passar, assim. Não havia, em primeiro lugar, um chefe incontestavelmente supremo. Se, por exemplo, todo o poder tivesse ficado — real quando não aparentemente — nas mãos de Afonso Costa, o país teria sido bem governado e administrado. De nada, ou de pouco, são realmente culpados Afonso Costa, António José e Camacho; a sua verdadeira falha é que eram três e não um. E acresce que a emergência para o primeiro plano, sucessivamente, de personagens até ali do segundo , reflexo da cisão na chefia, e efeito de ambições de várias espécies que se tornavam realizáveis, mais complicou o assunto — e esses recém-vindos, ou recém-vindos ao plano do governo, nada haviam chefiado na propaganda, nada haviam organizado, de importante pelo menos, dentro do Partido. O único período útil na vida governativa da República Constitucional foi o Governo Provisório; é que nele a cisão na chefia não estava mais que esboçada, e que decidiu, e muito bem, governar em ditadura, contra os seus princípios fundamentais — os princípios a cuja sombra haviam pregado e feito a revolução e conquistado o poder.
É curioso, e oposto, o caso do 28 de Maio. Este foi, como a Revolução Francesa, uma Revolução Nacional, saída deveras do âmago da nação, diversamente vítima, e diversamente revoltada contra, a quase plena anarquia, de rua a cabeça, em que o desmanchamento dos partidos e a eclosão de novos desconhecidos tinham lançado o país. Análogo à Revolução Francesa em carácter, embora diverso em realização — visto que era um movimento contra-revolucionário —, o 28 de Maio tinha forçosamente que resultar numa situação caótica. Revolução espontânea (pouco importa que a executasse o Exército, pois alguém, algum grupo, havia de ser o mandatário instintivo da nação) não trazia consigo programa algum. O Chefe que trouxe, grande figura de soldado, foi um chefe inteiramente ocasional; não conspirou, revoltou-se, como ele muito bem disse. Nada tinha organizado do que comandou. O período entre 28 de Maio de 1926 e 27 de Abril de 1928 — a vinda de Salazar ao poder — é talvez dos períodos mais perigosos para a Nação que ela tem tido em sua longa vida. Não por este ou aquele elemento externo ou visível, mas pela surda confusão, pela permanência, sob forma diferente, da anarquia que o 28 de Maio viera para extinguir, sem saber como. O pior evitou-se logo de início, com a entrega ao general Carmona da chefia da Nação. O seu grande prestígio mantinha, ao menos, a seu lado a maior parte da Força Armada. Assim — e ainda assim com violentas interrupções, como o 7 de Fevereiro — se manteve a ordem na rua, por pouco que ela se mantivesse nos espíritos. Outras figuras de prestígio, como o coronel Passos e Sousa, firmavam, ao menos, os alicerces da defesa da ordem. No resto, porém, confusão: a Revolução Nacional continuava sem ideias, pois não eram suas as dos integralistas — as únicas com sistema e coerência, mas de um grupo reduzido e, com razão ou sem ela, detestado, ou por monárquicos, ou por católicos, ou por antidemocráticos, pela grande maioria da Nação.
A vinda de Salazar trouxe enfim o Chefe de Acção Nacional. Gradualmente se sentiu a sua chefia, foi primeiro um prestígio de pasmo, pela diferença entre ele e todas as espécies de chefes políticos que o povo conhecesse; um prestígio psicológico, sim, antes de mais nada, porque o que primeiro se descobriu de Salazar, à parte o seu carácter ascético (traço que, de per si, não dá prestígio, mas geralmente reforça o que outras qualidades imponham), é que era, ao contrário dos vulgares chefes políticos, um homem de ciência, de trabalho e de poucas palavras, e, ao contrário dos portugueses vulgares, incapazes de pensar claramente e de querer firmemente, um espírito excepcionalmente claro, uma vontade omnimodamente forte. Veio depois o prestígio administrativo, do financeiro — prestígio que o povo, incapaz de criticar ou perceber uma obra financeira — imediatamente aceitou por virtude do prestígio já dado. Por fim, mais tarde, atraindo já certas classes cultas que ficaram um pouco retraídas, veio o prestígio do chefe político, do organizador da Constituição e do Regime Corporativo. Muito embora se não concorde com uma e outro, as classes para quem por ambos Salazar se prestigiou são classes que não ligam necessariamente a admiração à concordância. Por mim falo, que dessa classe sou.
É evidente que por "povo" entendo a massa geral da Nação — a que não está enquadrada num partido político, subservientemente. Desde que alguém entra para um partido político, deixa de ser povo para ser político. Quando dizemos, por exemplo, "o povo inglês", entendemos, não os indivíduos firmemente filiados nos partidos políticos (são muito poucos, em relação ao país, pois os partidos políticos ingleses são simples "directórios" e não partidos no nosso sentido), mas aquela massa não filiada que, oscilando em suas opiniões ou tendências, ora vota quase em peso nos laboristas, ora, quase em peso, passa a votar nos conservadores.
Como certo comerciante meu amigo, homem fora de literaturas, que nunca ouvira um verso meu e o não compreenderia se o ouvisse, várias vezes afirmou ser eu um grande poeta isto porque o ouviu a alguém literário e (inconscientemente para ele) eu lhe fazia muito bem a sua correspondência estrangeira. Havendo um prestígio que se sinta e entenda, todos os outros prestígios, ainda do que não entenda ou sinta, naturalmente se lhe ajuntam, logo alguém comece a dizê-los.
Em outras palavras, Salazar é considerado um grande ser, um homem de inteligência clara e de vontade firme. Não é lógico, mas é humano, e entre os homens é o humano que vinga.
Quando um homem tem como qualidades marcantes aquelas que mais notavelmente faltam ao povo a que pertence, o seu prestígio é imediato, embora seja, talvez, sempre um prestígio frio e constrangido — um prestígio intelectual, sem elemento emotivo.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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