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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Mas neste momento, chegados nós a esta solução,

Alemanha e a Guerra

Mas neste momento, chegados nós a esta solução, visto como nasceu e como se formou, e que sentido civilizacional tem o Império Germânico, reparamos de súbito que a psique desse império, tal qual chegámos a vê-la ser, tem um feitio especial.

Reparemos no seguinte: Os princípios emanados da Rev. Francesa estão na linha directa da evolução da civilização moderna. São eles, e não os princípios reactivos do império germânico, que estão na linha de evolução das sociedades modernas. Desde a Renascença que progressivamente se tem vindo caminhando para um individualismo mais acentuado, para uma cada vez mais complexa e turbulenta vida nacional.

Qual é o facto capital da nossa civilização? Sabido que o facto mais importante de qualquer civilização é o conceito que nela se faz do conjunto das coisas e das suas relações veremos facilmente que no fenómeno religioso é que reside, fundamentalmente, o critério indicador da base civilizacional. Ora a nossa civilização é cristã. Assenta sobre os princípios religiosos chamados, no seu conjunto, cristianismo. Quais são esses princípios? Será possível determinar a evolução das sociedades modernas pela evolução desses princípios? É fácil.

O cristianismo é, acima de tudo, uma teoria igualitária. É, em seguida, uma teoria individualista; para o cristão cada alma humana tem uma importância excepcional, com as suas divinas qualidades de livre-arbítrio, de aspiração potencial ao Divino, de capacidade de imortalidade. Em terceiro lugar, logicamente, o cristianismo é uma teoria de fraternidade e de paz. De modo que o cristianismo assenta sobre três princípios: liberdade, igualdade e fraternidade. A Revolução Francesa foi puro cristianismo.

Ocorrerá a um leitor menos subtil perguntar por que é que se o cristianismo é liberdade, igualdade e fraternidade, ele tem aplicado tão pouco esses princípios pela civilização fora. Em primeiro lugar, porque esses princípios são antagónicos à existência social, e aplicá-los, realmente e a valer, seria destruir a sociedade. Em segundo lugar, porque as sociedades cristãs têm em geral sido sociedades atrasadas, como as medievais, onde, além do forte império das instituições sociais rudimentares, como a força, a autoridade, pouco campo psíquico há, dado que são sãs e rudes, para a aplicação dos princípios de ternura e paz que o cristianismo trouxe. — E pergunte o leitor a si próprio de que modo têm aplicado a liberdade, a igualdade e a fraternidade as próprias sociedades emanadas da Revolução Francesa. Reporte-se ao caso

— que está em primeira plana, porque ali foi feita essa Revolução — da França. Até que ponto tem este país aplicado na sua vida política esses ternos e comoventes princípios cristãos?

Qual o processo sociológico pelo qual irrompeu — sob aspectos aliás longe de cristãos — o movimento cristão chamado a Revolução Francesa? Temos, para o ver claramente, que esboçar a evolução do cristianismo moderno.

Desde que se separou, na Renascença e depois da Reforma, do cristianismo católico, o espírito cristão tem caminhado lentamente num determinado sentido. Esse sentido é o de afastar cada vez mais o dogma, a “letra”, como diz o Evangelho, e de se dedicar cada vez mais ao “espírito”. O protestantismo mais não é do que a subordinação do dogma à doutrina, a substituição gradual da autoridade pela consciência no cristianismo.

O cristianismo envolve três elementos: o dogma, a fé propriamente dita e a atitude emocional resumida nessa fé. Ora o protestantismo substituiu ao dogma a fé. Qual seria a evolução seguinte do cristianismo? A substituição do espírito cristão, puro e simples, à própria fé que o representa. Vimos já que esse espírito cristão é, na sua essência, Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Daí a Revolução Francesa estar na linha de evolução religiosa do cristianismo. Esse movimento segue-se logicamente ao protestantismo. A Revolução Francesa é a Nova Reforma.

As ideias democráticas são cristianismo puro. Como tal pertencem ao espírito cristão. Como tais, são inimigas do catolicismo, que é o dogma, a parte mais dura e rígida do cristianismo; como o protestantismo, erguendo-se pela fé, foi contra o espírito católico.

A Europa é cada vez mais cristã. Cada vez mais abandona a letra do Cristianismo e se aplica ao seu espírito. Todo o fanatismo, toda a intolerância, toda a confusão mental, a sentimentalidade doentia dos democratas, mostram bem a base doentiamente religiosa do seu sistema.

Ora a nossa civilização, se bem que cristã de natureza, repousa sobre uma outra base, que não o cristianismo. Todo o nosso trabalho mental, toda a nossa disciplina de espírito, toda alma da nossa jurisprudência, o âmago do nosso modo de governar assentam numa base — o espírito pagão — a cultura grega e a administração romana. Nascido, como foi, na decadência do império romano, o cristianismo é um paganismo decadente. Quanto mais cristão se torna, quanto mais se afasta do paganismo — isto é do catolicismo, que é abundantemente pagão, sobretudo pelo ritual — tanto mais o cristianismo se afirma decadente e doentio.

Temos, pois, uma dupla evolução dentro da nossa civilização. Temos a evolução dela no que propriamente cristã. E temos a sua evolução no que pagã. Na linha de evolução cristã, vimos que estão a Reforma e a Revolução Francesa. A Revolução Francesa resultou da penetração da França pelo espírito protestante, quer através do suíço Rosseau, quer através da furiosa anglofilia do século XVIII em França.

Mas na evolução das sociedades modernas outra linha se segue, paralelamente; temos o movimento da Renascença, que é diferente. Ele ajudou a formar-se a reforma, mas, em si, tem características inteiramente diferentes. É pagão, puramente pagão. Assim, quando ele aparece, vemos aparecer os característicos típicos da mentalidade pagã: o despotismo pessoal, (...)

Para onde seguiu este movimento que a Renascença gerou? Qual é o movimento que o prolonga, e houve deveras movimento que o prolongasse?

Como nasceu a Renascença? Não nasceu, repare-se, duma evolução do cristianismo; nasceu, ao contrário, duma aplicação de parte do espírito cristão a pontos anticristãos. Aquela parte do cristianismo representada pelo dogma, com a sua dureza e a sua autoridade, foi utilizada pela Renascença, mas o espírito cristão abandonado por completo. De maneira que a Renascença é um movimento de característicos inteiramente opostos aos da Reforma (não esqueço que veio antes). Segue um sentido contrário. Adopta do cristianismo a atitude imperialista e dogmática; mas despreza-lhe os correctivos a essa atitude que vem do espírito cristão, sempre presente onde haja cristianismo.

Para a paganização total, seria preciso despir do imperialismo o espírito pagão. Caído o império germânico, esse fim será talvez conseguido. O imperialismo de domínio é da decadência do paganismo, de Atenas e Roma decadentes. Precisamos criar um imperialismo de influência, como o de Atenas original.

1. Formação do Estado Alemão e do Actual Império.

2. O Estado Alemão como Força Civilizadora.

3. O Estado Alemão como Estado Pagão.

4. O Estado Alemão e a Guerra Actual (Presente).

5. Conclusões.

s.d.

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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