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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Uma coisa que preocupa muito, ao que parece, os críticos...

Uma coisa que preocupa muito, ao que parece, os críticos que já têm quarenta anos é a atitude pouco “generosa” — no sentido que dão a este termo em política — das novas gerações. Não são democráticos, não são libertários, não simpatizam com os oprimidos, não odeiam a Igreja, não erguem a voz pela Justiça.

Parece aos mesmos críticos que esta atitude é triste. Talvez o não seja. Parece-lhes reaccionária. Talvez o não seja. Tudo depende do modo como se encara generosidade e reacção. E afinal o que esta atitude é uma coisa muito simples — é fruto da experiência.

A mocidade de há vinte anos vinha após a experiência constitucional, e toda a sua tendência, ante a falência dessa experiência, era contra o constitucionalismo. A mocidade de hoje vem após as democráticas, e, sempre no seu papel de mocidade, representa a reacção contra essas experiências, cuja falência estrondosa é de quotidiana evidência.

A mocidade de hoje viu, além disso, que os libertários, os socialistas, os democratas a arder em amor pelo povo, acabavam na concussão e no peculato, no uso, nas suas relações com o povo, da polícia e do exército. E, como esta experiência é a última, a mocidade de hoje lembrou-se de concluir que a realidade vale mais que as boas intenções, que é inútil pregar boas doutrinas se apenas as más podem vingar. Mais vale, pensaram eles, que se defendam, desde logo, as doutrinas antipáticas. Por mim, acho preferível defender, como algum dia farei, com a devida argumentação sociológica, que é mais legítimo que os políticos roubem e espoliem o povo, do que roubar e espoliar o povo chamando a essa atitude “governo popular”, “democracia”, “liberdade” e outras coisas assim.

O amor à verdade substitui, na mocidade de hoje, o amor à mentira, ainda que generosamente encarado, que caracterizava a mocidade de ontem e de antes de ontem. De nada serve servir a mentira, por generosidade que seja. O anarquismo, o socialismo, o democratismo — todo esse lixo de teorias simpáticas que se esquecem de que teorizam para a humanidade de carne-e-osso — foram divinizações da mentira. E foram essa coisa a que Carlyle chama a pior espécie da mentira — a mentira que se julga verdade. Não foram o erro, que é admissível. Foram a mentira inconsciente. Qualquer erra. Mas não todos mentem inconscientemente.

1918?

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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